Série Chico Buarque: "O meu guri" - o grito mudo de uma jovem mãe.
Continuando com a série em homenagem ao Chico Buarque, o Quarta Musical traz hoje a análise da música "O meu guri".
Essa canção foi composta em 1981 por Chico Buarque e traz uma narrativa bem delicada e chocante sobre a situação da população pobre que vive nas favelas e periferias do Brasil. Não é fácil fazer a análise dessa letra, pois é necessário enxergar o que há por trás das palavras que o autor escreve, toda uma realidade cruel marcada pelo descaso dos governantes que simplesmente não cumprem o que o 3º artigo da Constituição Brasileira determina: uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia de um desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, assim como, a redução das desigualdades sociais e regionais; e por fim, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ao entrarmos numa favela e ouvirmos os relatos de muitas pessoas que vivem, ou melhor, sobrevivem lá, é possível perceber a indiferença do governo, a total falta de estrutura para se viver e pra ter uma educação digna e de qualidade. É como se houvesse um mundo paralelo, que ao nascer e morar lá, sendo principalmente, pobre, preto e favelado, você perde todo o seu direito como cidadão, as oportunidades não chegam e diariamente você tem que lutar pra continuar vivo e quem sabe, conseguir chegar em algum lugar.
Vamos então à letra:
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Uma mãe jovem, provavelmente adolescente quando engravidou. Início dos anos 80, os métodos contraceptivos nem eram tão divulgados e distribuídos para a população carente. Ainda se fossem, pra alguém tão nova, sem estrutura familiar e sem instrução, é como se nem existissem.
Nasceu uma criança, um menino que não foi planejado vir ao mundo. O pai, não se sabe o paradeiro. A mãe que não sabia como cuidar nem dela mesma, sem dinheiro para se sustentar, teve que lidar com um ser faminto e ainda tinha que lhe dar um nome.
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim, levando, ele a me levar
E na sua meninice
Ele um dia me disse que chegava lá
Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí!
Ela não tinha a menor noção, do que fazer e de como iria criá-lo. Uma criança cuidando de outra. Com isso, os dois foram crescendo e aprendendo a sobreviver juntos, um dia após o outro. Quando cresceu um pouquinho e conseguiu perceber a realidade em que viviam, o menino prometeu a mãe que ele iria dar um jeito de conseguir superar tudo aquilo e alcançar o sucesso.
"Olha aí, é o meu guri" - uma fala repleta de orgulho e felicidade.
É o meu guri e ele chega
Chega suado e veloz do batente
Traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí!
O menino está sempre correndo, fugindo, com pressa e não fala pra mãe de que forma consegue dinheiro e as coisas de casa.
As correntes de ouro que rouba das pessoas, ele dá como presente para a mãe que fica toda contente. Naquela época, conseguir ter todos os documentos era um privilégio. Por conta disso, ela ficou feliz por finalmente "se dar ao luxo" de poder se identificar finalmente como uma cidadã de fato. O que ela não sabia é que os documentos, a bolsa e tudo o que continha ali dentro, tinham sido tirados de outra pessoa.
O terço e o patuá para uma ajuda divina, era só o que restava a essa pobre mulher.
Olha aí!
É o meu guri e ele chega
Chega no morro com carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Antes, ele aparecia com pequenos furtos. Agora, a carga fica mais pesada. Provavelmente o menino deve ter crescido no mundo do crime, tornando-se talvez em um interceptador.
Pulseira pode se referir à jóias de grande valor. Cimento talvez seja drogas ensacadas. Relógios caros. Pneus de carros roubados e gravador, que seja talvez um equipamento de comunicação.
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assalto está um horror
Nesse trecho a gente percebe a inocência dela diante da realidade e o amor que sente por aquele menino. A mãe reza, preocupada com o filho chegar a salvo em casa. Medo dos assaltos e de que algum mal o aconteça. Mas ela não sabe que ele é quem assalta, quem comete crimes.
"Cá no alto" nos dá a entender que ela mora em um morro, no alto do morro.
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente, acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí!
Nesse trecho a gente consegue perceber que é o filho quem cuida e sustenta a mãe. Ele faz de tudo para proporcionar a ela uma vida melhor, através das oportunidades que lhe surgiram.
A mãe é grata por tudo que o menino faz por ela; e em momento algum desconfia de sua honestidade.
Olha aí! (Ah, meu guri)
É o meu guri e ele chega (olha aí meu guri)
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
Nesse trecho a gente percebe que o menino está morto, provavelmente foi assassinado. Venda nos olhos, legenda e iniciais são ações que ocorrem quando morre um menor de idade e por conta disso não podem ser divulgadas suas identificações. A imprensa e jornalistas sensacionalistas ficam alvoraçados pra noticiarem a morte de um jovem criminoso e entrevistar a mãe, mas esta não compreende nada do que está acontecendo e não entende o motivo de tanto tumulto.
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí! É o meu guri!
Só o que ela entende é que ele conseguiu chegar aonde queria, conseguiu "subir" na vida. Talvez ela até saiba que ele está morto e o motivo para aquilo ter acontecido, mas não quer acreditar ou não consegue entender ou explicar.
"Olha aí! É o meu guri!" - Uma fala repleta de amor mas também com muita tristeza.
Essa canção foi interpretada por duas vozes belíssimas que deram toda a emoção e sensibilidade que a letra pede, principalmente por serem mulheres. Da saudosa madrinha do samba Beth Carvalho e da magnífica cantora Elza Soares, que chorou ao cantá-la, emocionando também todo o público a sua volta.
Abaixo algumas interpretações mais famosas.
Beth Carvalho, eterna madrinha do samba:
Gostaram da análise de hoje? Na próxima quarta é a última da nossa série de homagem ao Chico Buarque. Fique à vontade também pra pedir nos comentários alguma música que gostaria de ver aqui na nossa Quarta Musical!
Até a próxima!
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Texto: Priscilla Dutra
Edição: Nanda Catarcione
Orgulho e gratidão resumem o que sinto nesse momento. O casamento perfeito entre quem escreve e quem publica, com uma riqueza de detalhes, me dão a oportunidade de compreender essa canção, que outrora ouvia, mas confesso que não me dava conta de que tratava-se de um cenário tão real e atual. Muito bom poder contar com o talento e o potencial invejável que vcs têm. Parabéns, meninas!!!! Vcs vão longe!!!!
ResponderExcluirNossa eu fico feliz demais em ler isso! É uma honra pra nós receber esse feedback tão maravilhoso.
ExcluirMuito obrigada de coração! Esse projeto é feito com muito amor! Mais uma vez agradeço imensamente o carinho. ❤️❤️❤️❤️❤️
Nossa, muito obrigada pelo seu comentário! Como disse a Priscilla, nós fazemos esse projeto com muito amor! Esse feed back é muito valioso para nós! É muito bom ter pessoas como você por aqui. <3
ExcluirOlá. Muito bacana o conteúdo de vocês. Essa música é linda e merece mesmo ser lembrada e compreendida! Eu tenho um blog e vou deixar o link aqui convidando vcs para uma visita. https://cantodampb.com/
ResponderExcluirObrigado e Parabéns!
Muito obrigada pelo seu feedback Kleber!!! Fico muito feliz que tenha gostado!!! Já sigo o seu blog e achei ele super incrível também! Parabéns 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽❤️❤️❤️
ExcluirObrigada de todo coração, Kleber!! Essa música é genial demais! Amei seu blog e já te sigo no Instagram! Bom te ter por aqui :)
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