Série Chico Buarque: Cálice... de vinho tinto de sangue.
Olá galera!
Encerrando a série em homenagem ao ilustre compositor Chico Buarque, iremos trazer hoje para vocês a análise da música Cálice, composta por ele em parceria com outro grande artista da MPB, Gilberto Gil.
A dupla escreveu a letra da canção em 1973, mas só conseguiu ser lançada, cinco anos depois, no ano de 1978, quando enfim foi liberada pelos militares da Ditadura no Brasil. "Cálice" foi censurada por conta de suas inúmeras metáforas e duplos sentidos, que trazem uma denúncia de forma implícita, à dura repressão e violência proporcionadas pelo governo autoritário que comandava o país.
Gilberto Gil conta, que a ideia da música surgiu em uma Sexta-feira Santa, quando percebeu que a representação do cálice na Paixão de Cristo, serviria de inspiração para escrever mais uma canção. Imediatamente o cantor ligou para o amigo Chico Buarque que gostou da ideia e o convidou na mesma hora para vir em sua casa, a fim de começarem logo a composição.
O título da canção traz como referência, a passagem bíblica em que Jesus encontra-se no calvário e clamando aos céus diz: "Pai, se for possível, afasta de mim este cálice" (Mateus 26:39). Essa alusão a um momento tão importante aos cristãos, foi uma maneira que os autores encontraram de criticar o regime militar e principalmente, conseguir driblar a censura.
A palavra "Cálice", é entendida também como "Cale-se", um metafórico jogo de palavras, em que a primeira, refere-se ao tormento, a dor e o sofrimento físico causado pela tortura e a segunda, à censura, em que todos eram obrigados a calar-se e aceitar o que lhe era determinado.Gil e Chico decidiram juntos qual seria a melodia e cada um ficou responsável por duas estrofes da canção. Embora a ideia de escrever "Cálice" tenha partido de Gilberto Gil, que já havia inclusive iniciado a letra, o artista confessa que sempre teve bastante dificuldade de lidar com essa música. Todo esse simbolismo cristão e o ar de tristeza da melodia, tocam ele até hoje. A dor, o tormento, a repressão e a censura encontram-se em cada palavra mencionada em "Cálice", tornando-se para Gil, uma composição difícil de ser cantada. Por conta disso, em 1978, Chico Buarque grava a obra pela primeira vez, mas ao lado de Milton Nascimento.
Parafraseando a TV Brasil, em uma das entrevistas com os autores: "Nasce uma canção marcada pela dor"... Eis a mancha de sangue vinda da repressão.
Vamos à letra:
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é possível aguentar a dor e prosseguir?
Ter que ir trabalhar e aceitar o que lhe está sendo "enfiado pela goela" sem poder argumentar. Porque se você não tivesse um emprego, uma carteira assinada, era chamado de vagabundo e sua situação ficava ainda pior.
As pessoas eram silenciadas mas não deixavam de sofrer. As angústias e aflições ainda existiam, só não podiam ser ouvidas. A boca tinha que ficar calada, mas a dor no peito permanecia.
"Ser filho da santa" pode ser entendido como uma alusão à Maria (mãe de Cristo), em que os católicos a tem como mãe. Que também leva o nome da mãe de Chico, dona Maria Amélia.
Mas nesse trecho a gente percebe claramente a falta de uma rima quando diz "ser filho da outra". Isso demonstra que está presente a vontade do compositor em colocar um palavrão no lugar de "outra".
Tantas mortes camufladas e tantas mentiras divulgadas pela imprensa, manipulada pelo governo. Uma alteração da verdade na intenção de esconder uma violência desmedida.
*A bebida amarga dita na estrofe é uma de origem italiana chamada "Fernet", que Chico convidou Gil para beber enquanto escreviam a canção.
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Por diversas vezes, a polícia invadia as casas e as pessoas eram pegas de surpresa em suas camas durante a noite. Algumas eram presas, outras torturadas e tinham aquelas que simplesmente desapareciam.
Era muito angustiante não poder agir ou falar a respeito. O grito desumano é o som da dor. Pois, se não podia falar, o ato de gritar, acredito eu, ainda não era proibido.
Sentimento de impotência por não poder fazer nada. Mas era preciso continuar atento.
Chico morava no bairro da Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro, na qual a imensa lagoa serviu de paisagem, enquanto os compositores escreviam a canção. Nesse trecho "ver emergir o monstro da Lagoa" ele faz referência aos corpos que eram encontrados nos mares e rios, e que estavam desaparecidos de forma "misteriosa".
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
"Porca gorda" é uma representação da ganância de um governo que de tão corrupto, não sabe nem mais como governar. E o poder da polícia que encontrava-se enfraquecido pelo excesso de violência.
O mundo parecia que estava bêbado, pois a desordem era tamanha.
Era preciso usar da esperteza e inteligência pra conseguir driblar a repressão. Os bêbados continuavam a vagar pelas ruas, tentando sobreviver em meio ao caos.
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Nesse momento o autor encontra-se cansado.
A esperança era de que toda essa angústia não seria para sempre. Chegaria ao fim.
Queria ser livre para criar a própria sentença.
Queria morrer da maneira que achasse melhor.
Queria não ter que seguir mais as ordens. Fazer os repressores perderem a cabeça.
"Cheirar fumaça de óleo diesel" causa estresse ao sistema nervoso central e era uma das formas de tortura utilizada pelos militares.
E por fim, o autor faz um pedido de poder se expressar em paz e não ser mais perseguido.
Gilberto Gil e Chico Buarque em 1973, tentaram mas não conseguiram cantar a música "Cálice" no Festival "Phono 73", em São Paulo. A música já tinha sido proibida, mas eles ficaram cantando o refrão e murmurando junto com a melodia, quando Chico tentou ir mais além com a letra, seus microfones foram cortados. Sua voz silenciada.
Segue abaixo o vídeo desse momento:
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