Série Chico Buarque: "Atrás da porta" e sua intensidade poética.
A partir de hoje, o Quarta Musical trará uma sequência de três obras-primas do nosso grande cantor e compositor Chico Buarque, como uma forma de homenagem ao artista. A primeira canção que traremos para vocês se chama "Atrás da porta", composta em 1972 e ficou famosa na emocionante e belíssima interpretação de Elis Regina.
Em 2005, na gravação do DVD Romance da produtora RWR, Chico Buarque conta que "Atrás da porta" foi a primeira parceria dele com o compositor e arranjador musical Francis Hime. Segundo o artista, foi um episódio bem curioso que ocorreu, quando este tinha ido na casa de Francis em Petrópolis para passar férias. Até que em uma noite, numa reunião com poucos amigos, estavam eles cantando, tocando piano e já bebendo bastante. Quando Francis começa a tocar a canção "Atrás da porta" e conforme ia ouvindo a melodia, Chico começa a escrever a letra bem ali no meio de toda a confusão, algo que ele nunca tinha feito antes. Continuou escrevendo a canção mesmo com a agitação que rolava, até que aconteceu algo que ele não sabe explicar muito bem se foi por causa do whisky que acabou, a inspiração ou o porre que tinha sido muito grande, pois naquele tempo eles bebiam muito. Chico só sabe dizer que a letra ficou inacabada, pois foi escrevendo até a metade da música e depois não saiu mais nada.
Passou-se um bom tempo e um dia Francis ligou, quando estava morando em Los Angeles, e disse que o produtor do disco mandou uma gravação da Elis Regina cantando "Atrás da porta", somente até o pedaço onde tinha letra e o restante já orquestrado só esperando ser letrado. O compositor então escreveu a segunda parte em cima do arranjo pronto, juntamente com a voz da Elis cantando antes. A canção foi enfim finalizada e tornou-se um grande sucesso na voz espetacular da intérprete.Outro fato super curioso, foi a forma como Elis e Chico se conheceram, contado pela própria cantora num de seus shows. Um produtor chamado João Evangelista Leão, ligou e disse que um amigo dele compositor estava querendo entregar uma fita para a artista, com composições originais suas pra serem gravadas por ela. Após Elis concordar com a proposta, Chico vai até a casa dela, se apresenta, ela pede pra ele entrar e após isso não fala mais nada, só fica segurando o violão e olhando para os pés com cara de "quiabo mal feito" e de "jiló", segundo Elis Regina. Após 15 minutos naquela situação horrível e em total silêncio, a intérprete resolve se pronunciar e pede pra ele deixar a fita cassete com ela e que irá escutá-la. Quando Chico foi embora, ela ligou para o amigo João e diz que achou o cara muito estranho, que parecia que ele não tinha ido com a cara dela e que não havia como gravar as músicas dele, pois a história tava muito mal contada, segundo Elis, era impossível a pessoa ficar 2 horas na casa da outra sem falar nada. Evangelista então, tentou contornar a situação dizendo que o Chico era assim mesmo, era o jeito dele, pois não gostava de falar muito.
No final das contas, a timidez do Chico Buarque fez com que Elis Regina ficasse sem gravar 12 músicas dele, passando estas então para Nara Leão, sua grande rival musical da época, que fez interpretações ótimas das canções, de acordo com a própria Elis que contou essa história com muitas risadas.
Voltando então para a canção analisada de hoje...
"Atrás da porta" é um poema que traz em seus versos intensos, a descontinuidade de um relacionamento amoroso e o forte dilaceramento da eu-feminino, causado pela brusca ruptura com o seu amor. O que deixa tudo muito pior é a barreira que foi colocada diante dos dois, comparada-se a uma porta que se fecha.
O amor dessa mulher é tão imensurável que reflete na sua total perda de auto-estima, amor próprio e o controle sobre si mesma. Ela se rebaixa a tal ponto, que coloca a sua dignidade no fundo do poço, chegando a um nível grande de humilhação. Ocorre então, uma série de atitudes impulsivas provenientes do desespero causado pela dor da separação. A sensação de perda faz com que ela se sinta muito frágil, levando a um resultado de carência e total abandono. Chico Buarque revela nessa letra, toda a sua grandeza poética e gramatical, repleta de significações, ambiguidades e contradições que fazem dele, sem dúvida, um dos maiores nomes da Música Popular Brasileira.
Elis Regina em sua magnífica interpretação entrega-se totalmente à canção e se emociona de uma forma tão profunda e verdadeira, que chega a ser impossível não chorar junto com ela. Isso aconteceu em duas apresentações da cantora, que aconteceram juntamente com períodos diferentes da vida dela, quando esta viveu duas separações bem dolorosas. A primeira foi em 1973, quando estava recém separada do primeiro marido, o produtor musical Ronaldo Bôscoli e a segunda apresentação no ano de 1980, na qual podemos ouvir sua voz embargada e ver as lágrimas escorrendo pelo rosto, foi quando Elis terminou sua relação com o seu segundo marido, o arranjador musical César Camargo Mariano.
Vamos então à letra:
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei
Não precisou de palavras pra ela perceber que o amor dele tinha acabado. Só com o olhar ele revelou que estava indo embora e ela não acreditou ou talvez não quisesse acreditar.
Eu te estranhei, me debrucei
Sobre o teu corpo e duvidei
Achou estranha aquela atitude e se debruçou sobre o corpo dele, de forma desesperada, duvidando que ele quisesse realmente partir, deixá-la.
E me arrastei, e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos, teu pijama
Nos teus pés, ao pé da cama
Ela se humilha e perde toda a sua dignidade, ao se arrastar, arranhar o corpo dele e puxar o seu cabelo. Nesse momento a gente percebe a raiva que ela sente por o amar tanto. Um amor que dói, machuca.
Além de agarrar os pelos e o pijama, ela se joga aos seus pés, impedindo ele de sair do lugar. Ela faz de tudo pra ele não ir, até mesmo se rebaixar ao ponto de ficar no chão.
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Nesse momento ela já demonstra a sensação de carência e abandono, de não ter ninguém ali com ela para esquentá-la.
Ele enfim consegue ir embora e ela continua no chão, agora atrás de uma porta. Colocou-se uma barreira entre os dois.
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Sentimento de raiva e desejo de vingança, mas reclama baixinho pra ele não ouvir e nem ela mesma, pois não acredita que será realmente capaz de fazer isso. Ela quer que ele sinta a mesma dor que ela tá sentindo. O ódio se mistura com o amor.
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que ainda sou tua
Até provar que ainda sou tua
Mesmo sentindo raiva e querendo vingança, ela confessa que o ama e o "adorar pelo avesso" quer dizer que apesar dos seus erros, ela continua lhe amando, independente de qualquer coisa. Um amor que sobrepõe a tudo.
Chico Buarque coloca-se na figura de uma mulher ao escrever essa letra. Muitas de nós já nos colocamos em algum momento da nossa vida, numa situação parecida ou até mesmo igual a essa. Como se o amor de um homem fosse a coisa mais importante da nossa vida, até mesmo mais do que nós mesmas.
Essa letra nos causa um pouco de angústia e tristeza mas também, serve pra gente ter a absoluta certeza que ficar no chão atrás de uma porta, não fará parte do cenário de nossa vida.
Segue abaixo as lindíssimas interpretações dessa canção:
Elis Regina - 1980
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