Um trem para as estrelas e o Rio atual em 1987.

Depois de uma semaninha de pausa, voltamos com a nossa análise musical de toda quarta-feira. Sim, já com muita saudade! 

A propósito, já temos um nome para esse quadro e também um slogan! Quer saber qual é? Vem aqui e aqui nos nossos stories do Instagram!

Sem mais delongas, a análise que faremos hoje é de uma música maravilhosa que traz uma crítica social incrível em formato de poesia. Não poderia ser diferente tendo como compositores dessa linda obra, os grandes poetas da nossa música: Gilberto Gil e Cazuza. Ela então, foi composta no ano de 1987, com o objetivo de fazer parte da trilha sonora do filme “Um trem para as estrelas”, lançado no mesmo ano e dirigido por Cacá Diegues. 

Esse filme traz como protagonista um saxofonista chamado Vinicius, cujo apelido é Vina, interpretado pelo ator Guilherme Fontes. Vina passa por diversas  experiências arriscadas pelas ruas do subúrbio do Rio de Janeiro, em busca da sua noiva Nicinha que desapareceu misteriosamente durante a madrugada, após passarem uma bela noite de amor. Situações de miséria, injustiças, crimes e violências são vivenciadas pelo personagem, cujo o único propósito era encontrar a mulher amada e assim poder ser feliz fazendo a sua música. 

O filme traz a participação especial do cantor Cazuza, interpretando ele mesmo, e  foi indicado ao Oscar de 87, na categoria de melhor filme estrangeiro. Vale muito a pena assistir, pois, apesar do drama se passar na década de 80,  é como se tivesse sido gravado agora, no ano de 2020. Exceto pelas imagens e paisagens do Rio de 33 anos atrás, pois isso é algo que realmente mudou bastante. No entanto, toda a odisseia urbana vivida por Vinícius faz parte do cotidiano de muitos brasileiros atualmente. 

E é justamente sobre essa realidade cruel que a letra, escrita por Cazuza, de um "Um trem para as estrelas"  retrata perfeitamente.  Mas em compensação podemos, ao mesmo tempo,  apreciar  uma melodia tranquila e super gostosa de ouvir, composta por Gil. Essa contradição percebida na música, entre letra e melodia, nada mais é do que o próprio retrato do Rio de Janeiro, ou seja, um verdadeiro "purgatório da beleza e do caos", definido de forma esplêndida por Fernanda Abreu.   

A canção "Um trem para as estrelas" é uma representação do pensamento ilusório que temos de que a vida, principalmente a da população pobre, poderia ser melhor. Ela foi incluída no álbum "Ideologia" do Cazuza, considerado este, o disco mais politizado do artista. O período em que foi lançada é pós ditadura militar, onde trabalhadores brasileiros tinham que enfrentar a inópia do dia-a-dia, com medo do desemprego e da alta inflação. 

A realidade é que vivemos uma hipocrisia social, onde é passado para a população que o trabalho dignifica, sendo o mais importante na vida, pois é ele que irá proporcionar um retorno financeiro, com o qual conseguirão realizar seus sonhos e objetivos. Mas o que realmente acontece todos os dias, são pessoas que dão o sangue em troca da própria subsistência. E enquanto elas ficam na espera de "um trem para as estrelas", acabam embarcando em um novo navio negreiro...


Vamos então pra letra, galera!

São sete horas da manhã

Vejo o Cristo da janela

O sol já apagou sua luz

Já na primeira estrofe podemos perceber o olhar grandioso e empático do compositor Cazuza, em que ele reconhece o seu privilégio de poder morar em um lugar onde, ao abrir a janela, ele aprecia a imagem do Cristo Redentor. O monumento no entanto, fica do alto a observar, toda a agitação do início da manhã, como um mero espectador. 

Setes horas da manhã é o horário em que a maior parte da população brasileira entra no trabalho e, apesar do sol de uma cidade quente, o que vemos de fato é escuridão. Não há verdadeiramente uma luz. 


E o povo lá embaixo espera

Nas filas dos pontos de ônibus 

Procurando aonde ir

São todos seus cicerones

Correm pra não desistir

As pessoas, ao esperarem a condução, ficam procurando por um caminho de fuga, um atalho, em que possam escapar de toda aquela desordem, mas infelizmente não encontram. E o que resta para elas é se auto guiarem a caminho de seus empregos, sempre na correria e focando nas suas atribuições, para que não tenham tempo de pensarem em desistir. Apesar de ser tudo o que mais querem. 

Cicerone significa guia, aquele que conduz. 


Dos seus salários de fome

É a esperança que eles têm

A sociedade diz que devemos manter nossos empregos, pois é o que temos de mais importante. Mas a maioria dos cidadãos brasileiros, ganham salários que mal dá pra se alimentarem, porém permanecem sempre com a esperança de que tudo vai melhorar. E é essa expectativa humana que mantém o sistema capitalista. 


Nesse filme como extras

Todos querem se dá bem

Os extras são os bastidores de um filme, em que mostram as cenas que foram cortadas e as entrevistas com os que participaram da produção. É onde vemos toda a verdade por detrás dessa  ficção. Todos querem mudar de vida, mas atitudes corruptas e ilegais, muitas vezes, tornam-se uma alternativa quando não há oportunidades. 



Um trem pras estrelas

Depois dos navios negreiros

Outras correntezas

Um trem que sai dos trilhos e segue em outro sentido rumo a vitória. Sabemos que a escravidão acabou, mas agora existe um novo modelo do mesmo método, que nos remete a um suposto caminho de sucesso. No entanto, são apenas outras correntezas de um mesmo mar.  


Estranho o teu Cristo, Rio

Que olha tão longe, além

Com os braços sempre abertos

Mas sem proteger ninguém

É irônico ver que o Rio, possui um monumento tão alto capaz de visualizar toda a grandeza e complexidade da cidade, que nos remete a Deus, mas que infelizmente não protege ninguém.

O povo lá embaixo clama por proteção através de orações, pois vivem em uma cidade violenta, onde o sistema de saúde é precário e problemas econômicos afetam grande parte de seus habitantes. 



Eu vou forrar as paredes 

Do meu quarto de miséria 

Com manchetes de jornal

Pra ver que não é nada sério

A maior parte da população geralmente, tem os jornais e a televisão como os únicos meios de se informarem. Com isso, tudo o que é mostrado ali para eles são as únicas verdades a que devem se submeter. 

Nessa estrofe o autor diz que vai forrar as paredes com as folhas de jornais, como forma de mostrar que todas aquelas manchetes ali não são tão sérias como parecem ser. 


Eu vou dar o meu desprezo

Pra você que me ensinou

Que a tristeza é uma maneira 

Da gente se salvar depois 

A gente aprende desde pequeno que as coisas ruins acontecem, mas que depois vai ficar tudo bem. Faz parte da vida. Devemos ser passivos e aceitarmos o que acontece porque é assim que deve ser. Aprendemos que as inquietudes, exigências e clamores são atitudes ruins que não levam a nada e nos causam riscos, que protesto é uma balburdia que não dá em nada. 

Mas a verdade é que não devemos ficar parados aceitando todas as cacetadas que a vida nos dá. Temos que levantar, sair do lugar e lutar por uma vida melhor. Por um Rio de Janeiro, um Brasil e um mundo mais dignos e justos para todos nós!

Nos vemos na próxima! 

(Um ótimo início de primavera!)  

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Texto: Priscilla Dutra

Edição: Nanda Catarcione

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